O PL 2985/2023, atualmente em análise no Senado, propõe uma série de restrições à publicidade de apostas de quota fixa — as chamadas bets. Embora revestida de um discurso de proteção ao consumidor, a medida, na prática, pode comprometer seriamente os avanços conquistados com a recente regulamentação do setor e, mais do que isso, enfraquecer o mercado legalizado em benefício direto das plataformas ilegais. A pergunta que se impõe, portanto, é simples: a quem realmente interessa essa proposta?
É preciso partir de uma realidade concreta do mercado brasileiro: a regulação tardia e incompleta das apostas no mercado brasileiro fomentou um ambiente caótico, no qual o número de bets ilegais cresceu exponencialmente.
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Essas plataformas clandestinas operam à margem da legislação, sem qualquer contribuição tributária, sem controles de integridade, sem proteção ao consumidor e, principalmente, sem qualquer respeito às regras publicitárias. Elas se aproveitam da informalidade para driblar obrigações e oferecer condições comerciais mais agressivas, sem qualquer ônus regulatório.
As bets legalizadas, por outro lado, vêm arcando com altos custos de compliance, contribuições fiscais, exigências de licenciamento e compromissos com a integridade esportiva. No entanto, até o momento, a única vantagem competitiva tangível que possuem diante do mar de concorrentes irregulares é o acesso legítimo ao mercado de publicidade e marketing — um canal essencial para construção de marca, fidelização de apostadores e distinção em um ambiente saturado por operadores obscuros.
A autorização para a veiculação de publicidade foi concebida como um dos principais mecanismos de incentivo à adesão ao regime regulatório brasileiro, especialmente para atrair empresas estrangeiras que já operavam no país de forma transfronteiriça. Ao permitir a exposição de marca nos meios tradicionais e digitais, o governo federal ofereceu um diferencial competitivo legítimo às operadoras dispostas a se submeter às exigências legais, criando um ambiente de segurança jurídica e previsibilidade regulatória.
No entanto, o PL 2985 ameaça esvaziar esse núcleo essencial da legislação recém-aprovada. Ao restringir severamente a publicidade das casas legalizadas, o projeto desestimula a formalidade, fragiliza a concorrência leal e, contraditoriamente, fortalece os operadores clandestinos, que seguirão atuando sem fiscalização ou limites, como já fazem hoje. São justamente essas plataformas ilegais que lucram com a ausência de regulação e que mais têm a ganhar com a invisibilidade forçada das bets licenciadas.
Além disso, a proposta tem gerado grande apreensão entre os clubes de futebol profissional, hoje altamente dependentes de patrocínios das casas de apostas. Segundo dados da indústria esportiva, cerca de 90% dos clubes da Série A do Campeonato Brasileiro possuem contratos de patrocínio master com bets, que, em muitos casos, representam a principal fonte de receita para manutenção de elencos, infraestrutura e projetos sociais.
Experiência internacional: o caso da Itália
A experiência internacional reforça os riscos de medidas restritivas excessivas. Na Itália, o chamado Decreto Dignità proibiu totalmente a publicidade de apostas em 2018. O resultado foi um aumento expressivo na atividade de operadores ilegais, que se aproveitaram do vácuo deixado pelas marcas legalizadas. Sem a presença ostensiva das casas autorizadas no mercado publicitário, os consumidores passaram a ser alvo de mensagens camufladas e promessas de bônus atrativos de sites sem qualquer supervisão.
Conforme dados divulgados pela European Gaming and Betting Association (EGBA), a proibição total de publicidade de apostas na Itália favoreceu o mercado ilegal, resultando em um crescimento expressivo das apostas. A EGBA estimou que jogadores no país gastam € 26,38 bilhões por ano em sites de apostas não licenciados, representando aproximadamente 75% de todas as apostas no mercado negro italiano.
Em função desse número alarmante, a EGBA defendeu que a revisão da proibição de publicidade poderia reduzir as taxas de apostas no mercado ilegal, permitindo que os consumidores distingam entre operadores licenciados e não licenciados.
Consequências econômicas e insegurança legislativa
As restrições propostas não impactam apenas o futebol ou as bets legalizadas: elas ameaçam toda uma cadeia econômica construída em torno do marketing esportivo e digital. Agências de publicidade, veículos de mídia, influenciadores, criadores de conteúdo e plataformas de streaming que hoje dependem dessas campanhas seriam diretamente atingidos.
Ademais, não se pode ignorar o efeito nocivo da insegurança legislativa gerada por iniciativas como essa. Menos de um ano após a sanção da Lei 14.790/2023, o Congresso Nacional já discute sua revisão estrutural, sem qualquer análise de impacto regulatório ou amadurecimento do modelo recém-implementado.
Essa instabilidade jurídica compromete o ambiente de negócios, afasta investimentos e solapa a credibilidade institucional do país — especialmente em um setor que ainda busca se consolidar sob um marco normativo confiável.
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A quem interessa essa proposta?
É importante frisar que as operadoras legalizadas não se opõem à regulação da publicidade. Pelo contrário: reconhecem a necessidade de proteger menores, evitar mensagens enganosas e promover o jogo responsável. O que se questiona é a tentativa de eliminar ou tornar inviável um dos pilares da estratégia de consolidação das bets regulares: a visibilidade.
Portanto, a quem interessa essa proposta? Certamente não ao consumidor, que ficará mais vulnerável à atuação de operadores sem qualquer supervisão. Não ao Estado, que perderá arrecadação. E muito menos ao futebol brasileiro, que depende dos patrocínios da bets. O maior beneficiário é, ironicamente, o mercado ilegal, que ganhará espaço livre de concorrência institucionalizada.
A forma como o Senado aprovou o PL 2985 merece crítica contundente. A votação ocorreu de maneira precipitada, sem que houvesse um debate técnico aprofundado com os setores impactados e sem a realização de audiências públicas que permitissem à sociedade civil se manifestar. Ignoraram-se os potenciais efeitos colaterais da medida, especialmente no que tange ao fortalecimento do mercado ilegal e ao risco de colapso de receitas em áreas como o futebol profissional.
É fundamental que a Câmara dos Deputados, ao receber a matéria, não repita esse erro. Cabe aos deputados promover um debate transparente, com base em evidências e diálogo com os operadores do mercado, para que a construção legislativa não se afaste da realidade e do interesse público.