A cultura, em suas diversas manifestações, constitui um direito fundamental inerente à dignidade da pessoa humana, essencial para o desenvolvimento individual e coletivo. Não é à toa que o acesso à educação e à cultura é assegurado pela Constituição Federal, nos artigos 205[1] e 215[2], respectivamente, como pilar do Estado Democrático de Direito.
Dentre os múltiplos veículos de expressão e transmissão cultural e de educação, o livro ocupa posição de destaque. É ainda o principal e insubstituível meio de difusão da cultura e de transmissão do conhecimento.
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Como fonte de conhecimento, ferramenta de aprendizado, portal para a imaginação ou registro histórico, sua função é imprescindível para a formação intelectual, social e cultural da sociedade. A leitura amplia horizontes, fomenta o pensamento crítico e promove a cidadania.
No entanto, o acesso ao livro e à leitura enfrenta desafios. Segundo o 4º Orçamento de Subsídios da União[3], divulgado pelo Ministério da Economia em 2020, famílias com renda de até 2 salários-mínimos não consomem livros não-didáticos. A maior parte das publicações é adquirida por famílias com renda superior a 10 salários-mínimos, o que atualmente seria equivalente a R$ 15.180,00.
Essa distorção revela a necessidade de medidas estruturais complementares para assegurar aos cidadãos brasileiros o pleno exercício do direito de acesso e uso do livro, como determina a Política Nacional do Livro, instituída pela Lei 10.753/2003.
No campo internacional, reconhecendo a importância do acesso universal ao livro e à leitura, tem-se buscado meios de garantir este direito fundamental.
O Tratado de Marrakesh, elaborado em 2013 pela Organização Mundial da Propriedade Intelectual (OMPI)[4], foi o segundo incorporado no Brasil com status de norma constitucional, pelo Decreto 9.522, de 8 de outubro de 2018, depois da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência.
Este tratado internacional prevê que os Estados signatários devem implementar limitações obrigatórias aos direitos autorais para permitir a reprodução e distribuição de obras em formatos acessíveis a pessoas com deficiência visual. Trata-se, portanto, de um compromisso transnacional com a acessibilidade e garantia do direito humano à cultura e à educação.
Para além de regulamentar a questão dos direitos autorais sobre obras em formatos acessíveis, o Estado brasileiro dispõe de outros mecanismos com base constitucional para garantir o direito de acesso ao livro e à leitura, a exemplo da imunidade tributária dos livros, como veremos.
A imunidade tributária dos livros no Brasil
No plano interno, o Brasil sempre conferiu tratamento tributário privilegiado ao livro. A Constituição Federal, em seu artigo 150, inciso VI, alínea “d”, proíbe a instituição de impostos sobre “livros, jornais, periódicos e o papel destinado à sua impressão”. Trata-se de uma cláusula de imunidade tributária com viés de proteção de direitos fundamentais — notadamente a liberdade de expressão, o direito à educação e o acesso à cultura.
A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (STF) tem adotado uma interpretação ampla desta imunidade tributária, expandindo o seu alcance para além do material impresso, para abranger também livros digitais e dispositivos de leitura.
No julgamento do Tema 593 da repercussão geral (RE 330.817)[5], a corte reconheceu que a imunidade se aplica não apenas a livros impressos, mas também a materiais didáticos e informativos, como apostilas e encartes. Mais recentemente, no julgamento do Tema 657 (RE 595.676), a corte consolidou o entendimento de que a imunidade tributária se estende aos livros eletrônicos (e-books) e aos dispositivos dedicados à leitura digital (e-readers), mesmo que esses dispositivos possuam funcionalidades adicionais.
Essa interpretação foi formalizada na Súmula Vinculante 57[6], promovendo, assim, a difusão da cultura e do acesso à educação sem a oneração tributária, alinhando-se à evolução tecnológica do setor editorial.
Por outro lado, embora a imunidade constitucional restrinja-se aos impostos como ICMS e IPI, a legislação infraconstitucional estendeu benefícios fiscais às contribuições sociais incidentes sobre livros. A Lei 10.865/2004, com as alterações promovidas pela Lei 11.033/2004, fixou alíquota zero de PIS/Pasep e Cofins sobre a receita decorrente da venda de livros[7]. Essa medida, embora não configure imunidade, operou como política de incentivo à indústria editorial.
Segundo dados da Receita Federal, entre 2006 e 2020, o benefício fiscal proporcionado pela alíquota zero resultou em desoneração acumulada de cerca de R$ 9 bilhões para o setor. Na média, os livros representaram 0,86% do total das isenções de PIS/Cofins de 2006 a 2019. Em comparação ao Produto Interno Bruto (PIB), o referido benefício tributário correspondeu, em média, a apenas 0,01% do PIB anual[8].
Reforma tributária: avanços e riscos
Os livros também foram objeto de regulamentação no âmbito da reforma tributária. Aprovada por meio da Emenda Constitucional 132/2023, trouxe reestruturação profunda do sistema fiscal brasileiro. Dentre suas inovações, instituiu dois novos tributos sobre o consumo: a Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS), de competência federal, que substituirá o PIS, Cofins e IPI, e o Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), de competência estadual e municipal, que substituirá o ICMS e o ISS.
A princípio, o texto da proposta de reforma não explicitava a manutenção da imunidade tributária para livros nos novos tributos, o que gerou forte reação por parte do setor editorial. Entidades como a Câmara Brasileira do Livro (CBL)[9] e o Sindicato Nacional dos Editores de Livros (SNEL)[10] lideraram mobilizações que culminaram com a reinclusão da proteção constitucional na redação final da norma.
Nesse sentido, o artigo 9º[11] da Lei Complementar 214/2025, que regulamenta a EC 132/2023, dispõe expressamente “são imunes também ao IBS e à CBS os fornecimentos: IV – de livros, jornais, periódicos e do papel destinado à sua impressão”.
Com isso, preservou-se a sistemática da imunidade anterior e evitou-se o risco de elevação de carga tributária sobre bens culturais. Trata-se de vitória importante para a democracia, a educação, a cultura e a soberania intelectual do país.
Desafios persistentes
Apesar da manutenção da imunidade, o acesso ao livro e à leitura ainda enfrenta desafios em nosso país. O preço dos livros no Brasil permanece elevado. Tal fato decorre em grande parte da carga tributária incidente sobre insumos, serviços logísticos, energia elétrica e demais etapas da cadeia produtiva que não se beneficiam da mesma proteção constitucional. Como resultado, o custo final ao consumidor ainda representa uma barreira para ampliação do acesso à leitura, especialmente entre as camadas mais vulneráveis da população.
A trajetória normativa da tributação dos livros no Brasil reflete o compromisso do Estado brasileiro com a promoção da cultura e da educação no país. A imunidade tributária prevista na Constituição, reafirmada na jurisprudência do STF e mantida na reforma tributária recente, é expressão deste compromisso firmado em 1988.
Contudo, persistem desafios relevantes que demandam atenção do legislador, do Poder Executivo e da sociedade civil. A imunidade tributária deve ser compreendida não como um privilégio setorial, mas como um instrumento para efetivação de direitos fundamentais.
Nesse sentido, a lógica da seletividade fiscal precisa, aqui, se articular com a centralidade do livro como ferramenta de emancipação e desenvolvimento social. A democratização do acesso à leitura exige políticas públicas que reduzam os custos de produção, fomentem a bibliodiversidade e ampliem o alcance da distribuição de livros. Seguimos atentos ao tema pois, mais do que nunca, tributar o conhecimento é restringir o futuro – e proteger o livro é proteger a cidadania.
[1] https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm : Art. 205. A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho.
[2] https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm: Art. 215. O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais.
[3] https://www.camara.leg.br/noticias/750565-beneficio-fiscal-para-livros-somou-cerca-de-r-9-bilhoes-em-14-anos
[4] https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/decreto-n-10.882-de-3-de-dezembro-de-2021-364679801
[5]https://portal.stf.jus.br/jurisprudenciaRepercussao/verAndamentoProcesso.asp?incidente=1984213&numeroProcesso=330817&classeProcesso=RE&numeroTema=593
[6] https://noticias.stf.jus.br/postsnoticias/stf-aprova-sumula-vinculante-sobre-imunidade-tributaria-para-livros-eletronicos/
[7] https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2004/lei/l10.865.htm – Art. 28. Ficam reduzidas a 0 (zero) as alíquotas da contribuição para o PIS/PASEP e da COFINS incidentes sobre a receita bruta decorrente da venda, no mercado interno, de: VI – livros, conforme definido no art. 2º da Lei nº 10.753, de 30 de outubro de 2003 ;
[8] https://www.camara.leg.br/noticias/750565-beneficio-fiscal-para-livros-somou-cerca-de-r-9-bilhoes-em-14-anos
[9] https://cbl.org.br/artigos/reforma-tributaria-como-a-uniao-do-setor-assegurou-a-ampla-imunidade-do-livro/
[10] https://snel.org.br/entidades-do-livro-tem-pleito-atendido-na-reforma-tributaria/
[11] https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lcp/lcp214.htm