O sistema tributário de um país pode ser analisado sob diversas perspectivas. Não é incomum que economistas estejam mais focados em uma avaliação de eficiência, enquanto juristas estejam mais voltados à apreciação do sistema em sua capacidade de realização da igualdade.
Nesse ponto, aliás, surge o antigo e famoso dilema — ou trade-off — entre eficiência e igualdade. Quanto mais eficiente o sistema (eficiente no sentido de gerar menos distorções na alocação natural do mercado), mais desigual ele tende a ser. Quanto mais vocacionado à promoção de uma igualdade particularizada, mais complexo se torna — e, com isso, cresce a ineficiência.
A igualdade tributária depende fundamentalmente da eleição de critérios de realização. Ou seja, é preciso que a igualdade seja pensada sempre em vista da finalidade da norma e dos critérios de discriminação eleitos pelo legislador.
Conheça o JOTA PRO Tributos, plataforma de monitoramento tributário para empresas e escritórios com decisões e movimentações do Carf, STJ e STF
É por isso que, quando o sistema trata da utilização de impostos com fins fiscais, o critério de discriminação entre os contribuintes já está constitucionalmente dado: os contribuintes serão diferenciados de acordo com sua capacidade contributiva. Em termos simples, “paga mais quem pode mais”.
Nas taxas, o critério é distinto: “paga quem demanda o Estado”, com base em um princípio de equivalência. Essa mesma lógica se aplica às contribuições de melhoria. Já nos empréstimos compulsórios, o critério dependerá da forma específica de sua instituição. No caso das contribuições, há um critério complexo: parte da lógica de rateio em grupo e passa pelo critério da capacidade contributiva, tendo em vista as materialidades típicas dos impostos eleitas pela Constituição.
Naturalmente, a concretização de uma tributação igualitária perpassa a noção de legalidade. A tributação só pode ser considerada consentânea com a igualdade se, antes, tiver sido prescrita de modo geral e abstrato. É por isso que a igualdade — em um de seus sentidos, a igualdade perante a lei — depende da prévia eleição, por parte do legislador, de certos fatos (signos presuntivos de riqueza) que passam a ser qualificados como fatos jurídicos ensejadores da tributação.
Assim, se a tributação é baseada na lei e alcança quem realiza o fato gerador nela previsto, o particular que não realiza tal fato gerador não pode ser alçado à condição de contribuinte — ainda que, do ponto de vista econômico, sua conduta revele capacidade contributiva.
Esse quadro gera, então, uma angústia — e, em seguida, uma reação. A angústia nasce da ideia de que, se os tributos devem ser cobrados de quem ostenta riqueza e, nesse caso, se quem realiza planejamento tributário ostenta riqueza (ainda que não realize o fato gerador), esse sujeito, em tese, deveria ter sido tributado.
Claro que esse raciocínio se ancora numa certa interpretação da capacidade contributiva segundo a qual toda e qualquer riqueza identificada deveria ser objeto de tributação, o que é criticável. Como já afirmou Becker, a lei tributária não deveria ser vista como um falcão real que sai em busca de suas presas, os fatos geradores. De todo modo, esse debate não será aprofundado neste pequeno texto.
Voltando à linha de raciocínio, diante da angústia surgem muitos caminhos distintos de reação, passando-se pela defesa de uma consideração econômica do Direito Tributário ou mesmo pela criação de normas antielisivas, que podem ser específicas ou pensadas como endereço a questão de modo geral.
As normas antielisivas específicas são pensadas para endereçar práticas elisivas pontuais, mas esse caminho específico desencadeia uma corrida de gato e rato e, muitas vezes, o rato escapa. Muitos ordenamentos instituem, então, um segundo modelo de reação: a criação de uma norma geral que autorize – guardados certos critérios – que situações não formalmente enquadradas como fato gerador possam ser tratadas como tais.
Entra em cena uma autorização normativa para que fatos, atos ou negócios jurídicos realizados pelos contribuintes sejam requalificados pela autoridade tributária para fins de enquadramento legal. Países mundo afora ponderam os prós e contras desse modelo.
Se, por um lado, ele pode ampliar o alcance da igualdade tributária (no sentido de alcançar manifestações de riqueza que escaparam formalmente da tributação), por outro, desafia a segurança jurídica, especialmente quando os critérios de aplicação da norma antielisiva não são fixados de modo rigoroso pelo legislador.
Por isso, os países que adotam normas gerais antielisivas se esforçam por criar critérios objetivos de aplicação.
O Brasil, contudo, adotou um caminho curioso. Durante anos, discutiu-se se o país possui ou não uma norma geral antielisiva, com base no artigo 116, parágrafo único, do CTN. A norma foi amplamente considerada inexistente pela doutrina majoritária, mas aplicada em diversas autuações e confirmada pelo Carf sem que os contribuintes soubessem quais critérios norteavam sua utilização.
Os fundamentos variavam, com uso indiscriminado de experiências estrangeiras, descoladas de seus contextos normativos e institucionais. Mais recentemente, o STF, na ADI 2.446, entendeu que o referido dispositivo legal não conforma uma norma geral antielisiva, sendo voltado para casos de evasão. Ainda assim, o debate acadêmico perdura, agora quanto à correta interpretação do precedente do STF e seus efeitos nos casos de planejamento tributário.
Agora, sem muito alarde, a recente Lei Complementar 214/25, que instituiu o IBS e a CBS, parece reiterar esse modelo de insegurança, ao criar norma antielisiva sem o estabelecimento de qualquer parâmetro seguro de aplicação. O artigo 6º da referida lei elenca operações que não geram incidência dos referidos tributos — como, por exemplo, operações de baixa, liquidação e transmissão de participações societárias, inclusive decorrentes de operações de fusão, cisão ou incorporação.
Apesar disso, o §1º do mesmo artigo determina que haverá incidência de IBS e CBS sobre as operações mencionadas se, “na essência”, o “conjunto de atos ou negócios jurídicos” puder ser considerado como “operação onerosa com bem ou com serviço”.
Trata-se da criação de uma norma antielisiva sem o estabelecimento de parâmetros seguros de aplicação, sem que o intérprete seja capaz de definir, ex ante, se uma dada operação de venda de participação, por exemplo, ensejará ou não a incidência do IBS e da CBS. Isso porque os tributos poderão ser cobrados se a autoridade fiscal entender, no futuro, que, do ponto de vista da “essência”, aquela operação foi uma operação onerosa com bens ou serviços.
Inscreva-se no canal de notícias tributárias do JOTA no WhatsApp e fique por dentro das principais discussões!
O dispositivo remete a uma ideia vaga de “essência” da operação — sem dizer o que se deve entender por essência, como ela deve ser apurada ou quais garantias procedimentais são devidas ao contribuinte. Sem definição, sem rito e sem parâmetro de controle.
A cláusula é aberta e, por isso, absolutamente inconstitucional, por ofensa à legalidade tributária, no sentido de que os contribuintes têm o direito de antever, com clareza, se uma dada conduta enseja ou não o pagamento de tributo. Do jeito que a norma está posta, não se sabe se uma operação enseja ou não a tributação, porque não se sabe em que sentido sua “essência” será avaliada.
Normas antielisivas (gerais ou específicas) podem ser instituídas e têm o condão de conformar a política fiscal de cada país. Isso, no entanto, não autoriza, no Brasil, a criação de normas totalmente abertas, que gerem absoluta indefinição sobre quais são os atos, fatos ou negócios jurídicos que, uma vez celebrados pelos contribuintes, ensejam ou não tributação. Se a reforma tributária sobre o consumo veio para gerar desenvolvimento e diminuir litígios, este é um dispositivo que merece ser urgentemente repensado.
Fonte: https://www.jota.info/artigos/o-risco-silencioso-da-norma-antielisiva-do-ibs-cbs